DIA 5

Eu e minha criança


Estar na casa dos 20 permite que eu tenha uma visão muito mais clara da criança que existe dentro de mim. Não gosto de usar o termo “já fui”, porque, de certa forma, em muitos momentos ainda vejo a Lívia de 4, 6, 8 anos respondendo ou se fascinando por coisas novas.

Desde que conheci meu namorado, vi como muitas coisas da minha criança vêm se apresentando de forma clara no mundo — desde meu convívio comigo mesma até a forma como quero colo em algumas sensibilidades. Um mês atrás, mais ou menos, quando estava com ele, falei que queria comprar uma caixa de lápis de cor e um caderno de pintar. Não foi um problema pra ele parar o dia dele e ir comigo. Comprei uma caixa de 60 cores, o que, pra minha criança, é algo surreal.

Fiquei dias entretida na atividade e, ali, fui vendo como esse tipo de contato com coisas “infantis” permite a clareza de quem a criança é. Há momentos em que me sinto uma criança crescida, uma meninona — mas, agora, com 20 anos, tenho responsabilidades e tenho que aguentar o tranco quando o caminho fica estreito.

Desde que voltei a morar na cidade em que nasci, comecei a me questionar sobre a criança que habitava aqui. Do tipo: “Será que o que eles viam era o mesmo que eu sentia?” Longe de qualquer coisa negativa, só ponderando coisas que se espelham hoje no convívio com todos. Algumas esperanças que projetam em mim, muitas vezes, não vejo corresponder com toda a vida que vivi. “Por que cargas d’água você está esperando um resultado diferente da soma que eu tive?” Mas nada que me eleve demais.

Até os 8 anos, fui a única criança da família. A mais nova depois de mim é minha prima Valentina, que tem 12 anos, mas a gente nunca teve muito contato pelo fato de ela morar em outro país. Quando eu tinha 10 anos, minha irmã nasceu — e eu só acreditei no dia em que ela nasceu. Uma década de distância é muita coisa. Depois vieram minha prima Helena, minha irmã Alice e meu irmão Guilherme.

(essas são as meninas)

Mesmo tendo outras crianças, eu já quase não era considerada uma. Estava começando a lidar com coisas da pré-adolescência e todo o furacão que isso é na vida de uma menina.

Eu nunca fui a criança que brincava na rua. Fui poucas vezes. Tinha uma amiga da escola que morava na rua de casa e, de vez em quando, ela me chamava. Mas eu gostava mesmo de ficar em casa brincando com tinta, desenhando… Eu tinha meu fascínio por papel e coisas coloridas. Tinha minhas Barbies e esse mundo de roupinhas e coisinhas bonitinhas.

Nessa época, eu morava com minha vó Nanci, mãe da minha mãe. Foi ela quem cuidou de mim até meus 12 anos, quando ficou doente e faleceu. Na época, por mais que eu já tivesse plena consciência dos fatos e do acontecimento, eu não aceitava. E até hoje, quando lembro, é difícil conceber o pensamento. Era ela quem me dava colo sem perguntar o porquê.

Cresci, e como todo adolescente crescendo, o fato da infância virou algo não muito comentado. Por anos deixei de pensar na criança que tinha dentro de mim, o que foi até necessário pra minha formação e entendimento de mundo.

Isso mudou quando percebi que, em determinadas situações sensíveis, eu não sabia o porquê do meu sentimento, não entendia minha reação — até lembrar que existe uma criança, também chamada Lívia, aqui dentro. Então, pouco a pouco, comecei a me ver com outros olhos e ter conversas mais completas, claras e explicativas comigo mesma. Mas isso também só depois de três irmãos e duas primas.

As crianças que mais me ensinaram sobre o que é ser uma criança foram essas, que pude ver com olhos conscientes a formação e como um ponto se liga ao outro. E como os meus pontos se ligavam.

Ter um relacionamento saudável também me abre uma grande margem pra ver essas inclinações. Todo carinho, amor, respeito e compreensão que a gente tem é um espelho do que a gente recebia ou sentia falta quando os dois eram crianças.

Ver fotos ou ouvir lembranças de quando o outro era criança traz essa consciência de que tem duas crianças ali com a gente, e que elas merecem atenção quando aparecem.

Hoje, é ele quem me dá colo sem perguntar o porquê.

Vejo que muito da minha escrita, aqui e no diário, é só um pouco do que a Lívia de todos esses últimos 20 anos passou e sentiu, consentiu e aprendeu.

Não deixar de lado o fato de que eu levo comigo, até o fim da vida, o começo dela e tudo o que me trouxe a ser, me dá espaço pra, além de tudo, ser cuidadosa comigo mesma.

A verdade de que agora as crianças da minha vida estão se tornando adolescentes me abre ainda mais a chance de ver coisas sobre mim que não tive a oportunidade de perceber.

E agora eu, que sou a única figura familiar “mais velha” pra eles, fico com um certo desespero de qual exemplo eles estão tendo comigo.

Mas, crianças, se um dia vocês lerem isso, saibam que eu estou fazendo o que gosto — e espero que vocês, em toda a vida de vocês, façam o que fizer sentido pra cada um. Espero que tenham os caminhos e a clareza pra seguir em frente, seja lá com o que for. Como mais velha, meu dever é apoiar em todas as escolhas e dar colo sem perguntar o porquê.

Reconhecer a criança que existe em cada um, depois da consciência de ter uma própria, é mais fácil. E ver elas se comunicando é bonito quando você foge de todas as expectativas que o mundo adulto “exige”.

Abrir espaço pra conhecer quem você sempre foi pode te mostrar quem você sempre quis ser.

Anterior
Anterior

Dia 6

Próximo
Próximo

dia 4